A cobertura dá a entender que seria ilegítimo batalhar para eleger parlamentares que façam a defesa da reforma agrária. Imagem: Reprodução
Por Mônica Mourão*
Do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
O depoimento de José Rainha à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) escancara os objetivos espúrios da Comissão e os interesses de classe de parte da imprensa. Rainha, do Fórum Nacional de Lutas (FNL), já liderou o MST, mas se afastou em 2007. Sua convocação faz parte da tentativa de deslegitimar o Movimento a partir de falas de dissidentes; a repercussão dela, além de desinformar, por confundi-lo como alguém que ainda representa o MST, também revelou o quanto os grandes veículos comerciais brasileiros colaboram para criminalizar as lutas sociais em geral, utilizando-se do fato de que ele foi preso em março deste ano, apesar de liberado em junho pela Justiça.
Um exemplo evidente foi a publicação da Coluna do Estadão, escrita por Roseann Kennedy e Augusto Tenório e publicada no último dia 3 de agosto. Intitulada As relações de José Rainha e a deputada da CPI do MST que investiga o movimento; veja vídeo, a coluna dá a entender que são desonestas as relações entre Rainha e a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), além de associar o líder do FNL ao MST. A análise do texto pode ser pedagógica para compreender as estratégias da mídia ao construir seus conteúdos.
“A CPI do MST expôs nesta quinta-feira, 03, a proximidade do líder da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL) José Rainha com a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), que integra o colegiado criado para investigar os movimentos sem-terra. Rainha fez campanha política para a parlamentar. Além disso, desde abril, Sâmia emprega em seu gabinete na Câmara dos Deputados a líder sem-terra Diolinda Alves de Souza, que já foi casada com Rainha, com quem teve dois filhos. Revelações que levantam questionamentos sobre a isenção de Sâmia para integrar a CPI”. O primeiro parágrafo usa palavras que denotam haver uma relação escondida (pois ilegítima ou antiética) de interesses entre Rainha e Sâmia, através da ideia de que foi exposta a proximidade entre ambos e foram feitas revelações. Em todo o texto da coluna, não há nenhuma menção sobre Rainha não ser militante do MST.
Ao usar o termo “além disso” para se referir à campanha feita para eleger Sâmia, a coluna anuncia que vai tratar de mais um indício de relação fraudulenta entre depoente e deputada. A luta pelo direito à terra é, aqui, criminalizada em duas camadas: primeiro, estaria equivocada a demanda por reforma agrária; segundo, seria ilegítimo batalhar para eleger parlamentares que façam a defesa dessa pauta. A atuação de partidos de esquerda também é abordada com desconfiança, pois o fato de ter um posicionamento explícito em defesa dos sem-terra tornaria Sâmia sem condições para atuar na CPI, como se a “isenção” fosse um valor esperado de deputadas e deputados.
A insinuação de que por ter ideias e valores declaradamente a favor dos sem-terra, usada contra Sâmia, não é feita com a posição contrária: em nenhum momento a coluna questiona os interesses de Ricardo Salles (PL-SP) e Coronel Zucco (Republicanos-RS), respectivamente relator e presidente da CPI, ambos defensores do agronegócio e contrários à reforma agrária e aos movimentos sociais. A contratação de Diolinda Alves de Souza, ex-mulher de Rainha, também colocada pela coluna como algo escondido, é uma informação pública, encontrada facilmente na internet. O valor do salário, de R$ 3.780,68 com adicional de R$ 1.331,59 de auxílio, corresponde a quase quatro salários mínimos e, certamente, não constitui enriquecimento ilícito.
A coluna, ao final, relembra a violência misógina e gordofóbica sofrida por Sâmia, que tem sido alvo constante de violência política de gênero, especialmente por Zucco, como mostrado no texto anterior do nosso especial Vozes Silenciadas. Esse aparte, porém, não minimiza os ataques à idoneidade da deputada feitos no âmbito da Comissão, mas assimilados também no discurso da coluna do Estadão.
Apesar de ter sido o caso mais chocante de culpabilização dos movimentos sociais e de parlamentares de esquerda, com a “liberdade” de se tratar de uma coluna, não de uma notícia (que deveria ser mais “objetiva”), O Globo também repercutiu a visão dos oposicionistas na CPI. No dia 3 de agosto, o jornal publicou notícia com o título José Rainha diz à CPI do MST que tem relações ‘fraternas e políticas’ com Sâmia Bomfim e o subtítulo “Rainha disse não ter nenhuma ingerência sobre o fato de a sua ex-esposa ser empregada atualmente por Sâmia”. O modelo declaratório busca mostrar a “neutralidade” do jornal, mas também não se compromete com a apuração dos fatos. A matéria publica assim, em espaço de destaque, afirmações que buscam levantar suspeitas sobre a idoneidade de Rainha. Diferente da coluna do Estadão, logo no primeiro parágrafo O Globo caracteriza o militante como ligado ao FNL. Também reproduz frase dita por ele em que se “defende” das insinuações de relações espúrias com a deputada. “Tenho relações diplomáticas e pedi votos para vários nomes nesta eleição”. Ou seja, nada mais que atividades normais numa democracia.
A notícia d’O Globo também reproduziu a provocação feita por Salles a Sâmia, na véspera do depoimento de Rainha. “Ela está nervosa por saber que amanhã o padrinho dela será ouvido aqui”. Na matéria também do dia 3 de agosto, mas anterior à reunião da Comissão, O Globo afirmava que “o depoimento [de José Rainha] é considerado o mais aguardado até o momento pela oposição”. Não houve, na cobertura posterior à fala do líder do FNL, nenhuma observação do jornal sobre a inocuidade de sua inclusão na CPI para produzir quaisquer provas contrárias ao MST, a despeito da expectativa da oposição.
Já a Folha de S. Paulo deu destaque à violência sofrida por Sâmia durante a sessão. A matéria foi intitulada Presidente de CPI faz declaração machista e gordofóbica ao rebater deputadas; veja vídeo, com subtítulo “Zucco afirma que Sâmia está nervosa e pergunta se ela quer remédio ou hambúrguer; fala é repudiada por deputadas”. O próprio texto explica a escolha por focar no ataque do presidente da CPI: “o depoimento de José Rainha durou mais de cinco horas, mas ficou marcado pela declaração ofensiva de Zucco”. O jornal fez questão de deixar evidente que Rainha não é mais militante do MST.
Nenhum dos veículos acompanhados para a elaboração deste texto (Estadão, O Globo e Folha) deu destaque para o trecho do depoimento de José Rainha que repercutiu nos perfis de esquerda nas redes sociais. Perguntado sobre qual sua renda, ele respondeu que na faixa de três salários mínimos. Então o deputado Messias Donato (Republicanos-ES) o questiona sobre como paga a faculdade de medicina da filha, e ele responde que ela faz o curso através do Prouni, programa do governo Lula de inclusão no ensino superior. O ódio de classe, disfarçado de diversas formas, leva a “grande” imprensa a ignorar esse trecho da sessão da CPI e reverberar o discurso dos oposicionistas que visam a gerar suspeitas não só sobre José Rainha, Sâmia Bomfim, FNL, MST e PSOL, mas sim sobre todas as pessoas, partidos políticos e movimentos que lutam por igualdade social.
* Jornalista, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e associada ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
** A série Vozes Silenciadas – Quem quer calar a luta dos sem-terra? é produzida pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Coordenação: Mônica Mourão. Pesquisa: Alex Pegna Hercog e Eduardo Amorim. Colaboração: Olívia Bandeira e Pedro Vilaça.
Edição: Thalita Pires
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